Qual é a causa da incongruência de gênero?
As ciências biológicas e a psicologia comprovaram que a transgeneridade não é causada por influências sociais. Ninguém “vira” trans porque foi convencido disso, ou porque está na moda, ou porque teve um “trauma” na infância com determinado gênero. Principalmente por conta de dados clínicos sobre pessoas com condições intersexo e por resultados de experimentos com animais, sabemos que a exposição do cérebro fetal a diferentes graus de testosterona durante a segunda parte da gravidez (quando se inicia a formação do cérebro) altera algumas sensibilidades e comportamentos permanentemente. Além disso, há pesquisas demonstrando que gêmeos idênticos têm uma chance muito maior de serem ambos trans do que gêmeos não-idênticos – e que nos dois casos, a frequência é muito maior do que na população em geral – indicando que a transgeneridade possui forte influência de fatores genéticos.
Nosso objetivo é descrever como se forma a base biológica da identidade de gênero em seres humanos, recorrendo sobretudo a estudos em endocrinologia, genética e neurociência, além de estudos comparativos em modelos animais. É importante delimitar o que queremos dizer por “gênero” neste artigo em particular. A nível neural, estamos falando sobre diferenças em algumas áreas-chave do cérebro, induzidas pela presença ou não de testosterona durante a gestação. A nível comportamental, essas diferenças se traduzem em uma identificação intuitiva com as experiências de pessoas do seu próprio gênero. Isto pode tomar várias formas como abordamos no capítulo sobre euforia de gênero. Devemos frisar entretanto que os pontos abaixo não pretendem esgotar tudo que pode ser dito sobre as diversas formas como as pessoas se relacionam com ou expressam seu gênero, dado que este processo é indissociável de fatores sociais.
Por exemplo, historicamente, vários países exigiram que mulheres trans fossem heterosexuais, exibindo disforia genital e com expressão hiperfeminina para que pudessem ter acesso a tratamentos básicos como terapia hormonal. Este obstáculo médico dificultou que fosse conhecida a mera ideia de que uma mulher trans pudesse não exibir disforia genital, ou ter uma expressão de gênero fora dos padrões heteronormativos, ou não ser heterosexual, etc. Esse estereótipo dificultou que pessoas fugindo de tais padrões pudessem conceber a si próprias como mulheres trans e a se sentirem legitimadas a buscar tratamentos medicamentosos, mudanças de apresentação ou expressão, ou qualquer um dos meios pelos quais pessoas trans buscam maior conforto com sua experiência de gênero. Porém, nada disso alterou o fato de que tais pessoas não se identificavam com o gênero designado a elas no nascimento, mas sim com o gênero feminino. Em outras palavras, a sociedade pode influenciar sua decisão de transicionar ou sua capacidade para se entender enquanto pessoa trans, mas não sua afinidade e identificação com pessoas de seu gênero real.
Colocando de uma maneira mais geral, a sociedade, em suas práticas e discursos, fornece a fonte e restringe o campo de símbolos e conceitos que temos à disposição para dar sentido às nossas experiências e inclinações naturais no que diz respeito a gênero. Tais práticas e discursos obviamente variam também de lugar para lugar, sendo conhecida a enorme variedade antropológica com respeito tanto à expressão de gênero quanto às categorias de que pessoas dispõem para falar deste assunto. Assim, quais práticas serão tidas como tipicamente masculinas ou femininas em uma sociedade qualquer pode variar bastante. Apesar disso, qualquer sociedade vai possuir ao menos dois gêneros (reconhecidos simbolicamente como algo análogo aos conceitos de ‘homem’ e ‘mulher’ no ocidente), e a sensação intuitiva de identificação com um gênero ou outro ainda será determinada por fatores não-sociais, antes do nascimento. Pessoas cis tipicamente tendem a se identificar com algumas práticas vistas como próprias ao de seu gênero designado – não importando especificamente quais atividades são essas – e o contrário (uma não-identificação exclusiva ou completa) tende a ocorrer com pessoas trans.
Em um relato antropológico famoso, Pierre Clastres narra o caso de Krembégi, uma pessoa do povo aché que, designada masculina ao nascimento, passou em certo ponto da vida a se comportar em todos os aspectos relevantes como outras mulheres aché, abandonando o uso do arco e flecha usado pelos homens para caça, e passando a carregar o cesto tipicamente usado pelas mulheres para carregar objetos, coletar frutas, etc., além de se relacionar com homens e se mostrar bastante feliz com a posição social que viera a ocupar. O conforto sentido por Krembégi em viver tal como outras mulheres aché, assim como seu desconforto em agir e ser tratada como os homens aché derivava de uma inclinação natural sua, e não de influências sociais. Peculiaridades da sociedade aché foram relevantes então para estabelecer uma divisão de tarefas entre os dois gêneros, bem como para a aceitação de Krembégi enquanto mulher (diferente da nossa sociedade, não havia transfobia entre os aché), mas nenhum fator social fez com que Krembégi se sentisse como outras mulheres em primeiro lugar.
Em suma, a sensação de euforia ao expressar seu gênero real não é algo que pessoas trans “escolhem” ou “aprendem” a sentir imitando sua cultura, mas sim um fenômeno que deriva da variação biológica humana normal. Sentir uma afinidade profunda e “inexplicável” com pessoas de seu gênero real são consequências de se ter um sistema nervoso mais similar ao destas pessoas, em alguns aspectos importantes. Isso não significa dizer que nossos cérebros são azul ou rosa: a grande maioria das funções neuronais não estão relacionadas a gênero, porém, estudos em neurologia (mais abaixo) encontraram diferenças pequenas, mas estatisticamente significativas em regiões-chave do cérebro de pessoas de gêneros diferentes.
Como uma pessoa pode ter um sistema nervoso não alinhado ao gênero que se costuma associar aos seus genitais é o tema deste artigo. Como esta pessoa dá sentido simbolicamente a essa experiência ou como ela lida com as expectativas sociais colocadas sobre sua expressão de gênero são processos importantes, mas que são objeto de outros textos neste site.
A formação do sexo e gênero no desenvolvimento fetal humano
Em fetos humanos, os ovários e testículos (gônadas) se desenvolvem a partir de um mesmo tecido, que pode se diferenciar em um ou outro órgão a depender de alguns processos embriológicos. No caso de pessoas com cromossomos XY, o gene SRY do cromossomo Y libera uma proteína chamada Testis Determining Factor (TDF). Essa proteína então inicia uma reação em cadeia com a produção de SOX9 (outra proteína), que faz com que as células gonadais se transformem nas células de Sertoli e Leydig que constituem os testículos. Se a TDF nunca é produzida ou sofre interferência, então as células da gônada transformam-se nas células tecais e nos folículos que compõem os ovários.
Uma vez formados, os testículos começam a produzir um pico de testosterona que normalmente começa na 8ª semana de gestação e continua até a 24ª semana. Essa onda de testosterona, combinada com outro hormônio da placenta, é responsável pelo desenvolvimento do pênis e do escroto. Se isso não ocorrer ou se por algum motivo o corpo não responder aos hormônios masculinizantes (como no caso da síndrome de insensibilidade completa a andrógenos), então outro caminho genético-bioquímico é ativado e a genitália se desenvolve em vulva, vagina e útero. A formação da genitália começa por volta da 9ª semana e torna-se identificável a partir da 11ª semana.
Já o cérebro pré-natal só começa a se desenvolver de verdade entre a 12ª e a 24ª semana. O córtex cerebral, a fina camada externa do cérebro que costumamos associar a processos cognitivos conscientes, cresce substancialmente durante esse período. Antes disso, a estrutura presente é mais como um andaime, formando apenas as partes básicas do sistema nervoso necessárias para o funcionamento corporal. Os sulcos primários (as rugas no córtex cerebral que permitem mais área de superfície e portanto mais neurônios) começam a se formar na semana 14, bem depois de os órgãos genitais terem se desenvolvido. É neste período da gestação que hormônios sexuais podem estimular algumas diferenciações neurais, o que causa influências em sensibilidades e comportamentos, incluindo aqueles relacionados a gênero.
Interferências em algum desses processos podem resultar em um desenvolvimento sexual diferente, como é o caso de várias condições intersexo. Em alguns casos, ocorre um desenvolvimento atípico da genitália (como uma masculinização parcial que a torna, em termos médicos, “ambígua”), apesar da presença de ovários ou testículos típicos e funcionais. Em outros casos, a criança possui um pênis ou vagina típicos, mas com gônadas “incompatíveis” (pênis e ovários, vagina e testículos ou outras combinações).
Um exemplo desse tipo de condição é o de pessoas XY com deficiência de 5-alpha-redutase. No processo de formação do pênis, a testosterona é convertida pelas enzimas 5-alfa-redutases em dihidrotestosterona (DHT), que é responsável pela masculinização da genitália externa, ainda no estágio fetal. Pessoas XY com deficiência de 5-alpha-redutase não conseguem converter testosterona em DHT, impedindo o desenvolvimento externalizado da genitália masculina. A aparência ambígua do genital nessa situação leva médicos tradicionalmente a classificarem o recém-nascido como feminino (AFAB) – apesar deste possuir cromossomo Y . Contudo, devido à presença de testículos internos funcionais, na puberdade as características sexuais secundárias masculinas que não dependem de DHT, mas apenas de testosterona, se desenvolvem normalmente. Por exemplo, ocorre engrossamento da voz, crescimento do falo e aumento de massa muscular, mas não barba pronunciada ou perda de cabelo (que são efeitos da DHT). Refletindo o fato de que seu sistema nervoso é exposto a níveis de testosterona típicos para o padrão masculino durante a gestação, entre 56 e 63% dos indivíduos com deficiência de 5-alpha-redutase iniciam uma transição de gênero masculinizante na adolescência ou idade adulta.
Embora os números de pessoas com 5-alfa-redutase que decidem transicionar sejam bastante maiores que os cerca de 0.4% que se estima representa a população trans nos EUA, isso não ocorre em 100% dos casos – de acordo com relatos de pacientes, uma das razões para não transicionar é a existência de pressões sociais (de familiares e amigos) para manter a expressão de gênero feminina que lhes foi designada ao nascer. É importante ressaltar que estatísticas sobre pessoas trans provavelmente não refletem o real número dessa população, pois muitas delas não vão perceber ou assumir isso por conta de desinformação e rejeição social.
Em alguns casos, a proteína TDF não é liberada e o feto pode desenvolver ovários e vagina completamente funcionais, mesmo possuindo um cromossomo Y. Isso é conhecido como Síndrome de Swyer, uma condição que pode afetar um número desconhecido de mulheres. Em 2015, uma mulher XY com Síndrome de Swyer que nasceu sem ovários gestou e deu à luz uma criança por fertilização in vitro. Geralmente a Síndrome de Swyer resulta em ovários não funcionais, mas em 2008 foi encontrada uma mulher com Síndrome de Swyer que havia passado pela puberdade, menstruado normalmente e teve duas gestações sem assistência. Sua condição permaneceu desconhecida até que sua filha também foi diagnosticada. O fato é que a grande maioria da população nunca teve seu cariótipo genético testado, então não sabemos o quão comuns são casos como este.
O que isso tudo tem a ver com a identidade de gênero? Assim como no caso da genitália e das gônadas, o cérebro humano também passa por uma diferenciação influenciada por hormônios sexuais durante o período fetal. Contudo, a genitália e o cérebro são formados em momentos diferentes da gestação, e diversas variações nesse período podem levar alguém a ter um sistema nervoso que é diferente em alguns aspectos ao de pessoas do gênero que lhe foi designado com base na aparência de seu genital – que é o que ocorre em pessoas trans. Essa diferenciação do tecido neural é a origem das afinidades intuitivas que qualquer pessoa sente com determinadas experiências de gênero.
Diferenciação sexual do sistema nervoso no período fetal
Alguns achados de experimentos em animais como roedores e primatas ajudam a explicar como a influência dos níveis hormonais no período fetal contribui para definir comportamentos sexualmente dimórficos (isto é, comportamentos que variam conforme o sexo do animal), fornecendo modelos de como tal processo ocorre em seres humanos. É bem estabelecido experimentalmente que é possível induzir comportamentos típicos de animais machos em fetos de ratos e de macacos Rhesus XX expondo-os a níveis de testosterona típicos de fetos XY. Isso altera comportamentos sexuais, aumentando a tendência do animal a “montar” em fêmeas para iniciar a cópula, e também comportamentos sociais, como maior preferência por brincadeiras “agressivas” e menor frequência de vocalizações. Esta “masculinização” induzida artificialmente só ocorre se a testosterona é introduzida durante a formação do sistema nervoso do feto – caso o hormônio seja injetado apenas antes deste ponto, ocorre virilização da genitália, mas sem alteração no comportamento. Assim como as observações acima sobre certas condições intersexo, tais experimentos reforçam ainda mais a hipótese de que a inclinação natural e intuitiva de qualquer pessoa por seu gênero é influenciada pela presença ou ausência de efeito da testosterona fetal sobre seu sistema nervoso.
Em humanos, uma mudança nos níveis de testosterona no feto após a 11ª semana pode impactar diretamente na “masculinização” do córtex cerebral, assim como mudanças em outras partes da estrutura cerebral. Caso ocorra apenas exposição mínima do sistema nervoso à testosterona, o sistema nervoso central se desenvolve de forma anatomicamente mais similar ao de mulheres em certas áreas-chave (mais abaixo), e é provável que a pessoa manifeste uma identidade de gênero alinhada à feminina. Este é o caso de qualquer mulher cis XX ou de mulheres XY com insensibilidade completa a andrógenos (CAIS), por exemplo (“andrógenos” são a classe de hormônios “masculinizantes” que inclui a testosterona). Já no caso de uma exposição (e absorção) mais significativa de testosterona sobre o feto, este deverá manifestar uma identidade de gênero masculina após o nascimento. Entre esses dois extremos, uma infinidade de casos pode ocorrer: desde os diversos graus de insensibilidade a andrógenos, que impede a “masculinização” do sistema nervoso tipicamente esperada em pessoas XY (no caso de pessoas transfemininas), até um grau de exposição a andrógenos superior ao típico cisfeminino no desenvolvimento embrionário de pessoas XX (no caso de pessoas transmasculinas).
Outro dado relevante vem do caso de pessoas XX com HAC (hiperplasia adrenal congênita), uma condição relacionada a problemas na síntese de cortisol. Na maioria dos casos de HAC há alteração na produção de hormônios sexuais, levando a uma elevada síntese de testosterona por sua glândula adrenal (e portanto maior exposição a mais testosterona intrauterina), levando à manifestação de preferência por brincadeiras ‘masculinas’ na infância e a variados níveis de virilização da genitália. Embora a maioria (95%) das pessoas com HAC se identifiquem como mulheres, os 5% de indivíduos que transicionam representam um número muito mais alto que a baixa frequência da transgeneridade estimada na população em geral (0.02 a 0.03%), reforçando o papel do período fetal na determinação da identidade de gênero. Mais importante, o grau de virilização do genital não é um fator preditivo da manifestação de identidade de gênero masculina em pessoas com HAC, mais uma vez demonstrando que o processo de formação do genital é distinto e autônomo daquele responsável pela diferenciação sexual do sistema nervoso.
Para além dos casos em que alguma condição intersexo conhecida foi a origem da divergência entre o genital e a identidade de gênero, existe um contínuo, observável geneticamente, na sensibilidade a andrógenos de qualquer pessoa. Um estudo bastante amplo de indivíduos trans encontrou vários genes-chave que são estatisticamente mais prováveis de serem mais longos entre as mulheres trans (longos no sentido de terem mais fragmentos repetidos). Individualmente, esses genes podem não ter um impacto forte o suficiente para causar um “mau funcionamento” da masculinização no restante do corpo, mas coletivamente eles poderiam reduzir a capacidade do cérebro fetal de ser afetado pela testosterona. Junto dos estudos em gêmeos, tal tipo de achado corrobora a noção de que a transgeneridade possui relevantes bases genéticas.
Além dos estudos em animais e das observações clínicas da experiência de gênero de pessoas com condições intersexo, foi confirmado várias vezes através de estudos de ressonância magnética que existem pequenas, mas significativas diferenças entre cérebros de homens cis e de mulheres cis, e que, em pessoas trans, essas diferenças se alinham com a identidade de gênero real da pessoa. Ou seja, homens trans têm certas regiões do cérebro mais parecidas com as de homens cis do que com as de mulheres cis, e o mesmo ocorre com mulheres trans. Observe que isso não significa que qualquer pessoa com essas diferenças expressará esse gênero (afinal, conforme ressaltamos acima, uma infinidade de fatores sociais pode influenciar o processo de auto-identificação de uma pessoa trans), mas fornece evidências de que a identidade de gênero é um fator correlacionado a algumas pequenas diferenças anatômicas e de conectividade no cérebro.
Em termos comportamentais, a diferenciação do sistema nervoso na direção de um ou outro gênero costuma se refletir em uma maior afinidade com pessoas de seu gênero real, e na exibição de certos comportamentos mais típicos deste gênero, sobretudo na infância e adolescência. Com isso, não queremos dizer necessariamente comportamentos alinhados a padrões heteronormativos de gênero – é bastante mais complicado afirmar que determinado comportamento humano é categoricamente masculino ou feminino. Porém, como no caso da aché Krembégi, é comum que pessoas trans se espelhem em pessoas de seus verdadeiros gêneros, independentemente de contingências sociológicas. O efeito desta diferenciação sobre o comportamento fica mais evidente quando estudamos modelos animais, em que fatores culturais podem ser minimizados e fatores biológicos podem ser controlados experimentalmente.
Em resumo, um excesso de testosterona no corpo da mãe durante o segundo trimestre pode (e vai) causar masculinização do cérebro, independente da genitália do feto, e uma interferência na produção ou absorção de testosterona pode (e vai) causar um desenvolvimento do cérebro na outra direção. Essa interferência também não precisa ser de origem externa (como é nos experimentos com animais em que é injetada testosterona): além de condições intersexo, a variabilidade genética humana natural pode fazer com que o cérebro responda de maneira diferente à testosterona. Os achados acima explicam, a nível biológico, por que pessoas sentem uma afinidade natural/intuitiva com seu gênero real – e de que modo este gênero pode não convergir com aquele designado no seu nascimento.
Patologizando identidades trans?
É comum que haja um receio de que ao relacionar fatores biológicos à identidade de gênero, poderia-se estar abrindo margem para a patologização de identidades “desviantes”. Não é nenhuma novidade que as categorias de saúde mental na psiquiatria contribuíram historicamente para a patologização de características associadas a grupos marginalizados. Já abordamos em capítulos anteriores como as primeiras concepções médicas relacionadas a pessoas trans eram extremamente limitantes e tentavam encaixar as pessoas em categorias heteronormativas de gênero a fim de validar essas identidades.
Mesmo hoje, pesquisas científicas sobre transgeneridade costumam sofrer de sérias limitações metodológicas, sobretudo no que diz respeito à definição de suas amostras. É bastante raro que qualquer pesquisa sobre bases biológicas de gênero abarque a existência de pessoas não-binárias, agênero ou gênero-fluido, por exemplo. Em geral, tais pesquisas trabalham com uma definição binária de gênero, realizando comparações entre conjuntos de indivíduos identificados como ‘mulher cis/trans’ e ‘homem cis/trans’, sem que seja levado em conta o caráter contínuo das várias diferenças (físicas e comportamentais) entre estes grupos.
Apesar disso, é preciso ressaltar que a pesquisa científica contemporânea em ciências biológicas acerca de sexo e gênero não está a busca de uma “cura” para a transgeneridade. A validade da existência de pessoas trans não está em jogo quando discutimos possíveis causas biológicas da identidade de gênero. Ao invés disso, tais pesquisas nos mostram que a transgeneridade é apenas parte da variação natural humana, como a cor dos olhos ou a altura. Ninguém se “torna” trans, se nasce trans, e não há nada que possa ser feito para suprimir nossa existência.
A hipótese aqui defendida – de que a transgeneridade tem bases biológicas na variação humana normal – se coloca em contraste ao pressuposto tradicional adotado na medicina moderna até poucas décadas atrás: a visão típica costumava ser de que a criança nasce como uma folha em branco e desenvolve sua identidade de gênero exclusivamente sob influências do ambiente como a criação, a exposição a certos modelos de comportamento etc. Não era discutido na época o papel que poderiam ter fatores biológicos, sobretudo aqueles associados ao período intrauterino, sobre o desenvolvimento da identidade de gênero em humanos. Seguindo este princípio, algumas das primeiras pesquisas sobre disforia de gênero tentavam encontrar suas causas em dinâmicas familiares “disfuncionais” ou experiências traumáticas na infância.
Conforme apontamos em outro artigo, a crença de que o gênero é puramente uma construção social, junto à ideia de que qualquer variação de uma divisão binária estrita entre os gêneros masculino e feminino deveria ser “corrigida”, serviu de justificativa para que médicos simplesmente decidissem, de forma violenta e arbitrária, o gênero de crianças cuja genitália era “ambígua”. Por se tratar de uma cirurgia mais simples, escolhia-se tipicamente pela construção de uma vagina no recém-nascido.
Hoje, sabemos que o desenvolvimento da identidade de gênero ocorre inicialmente com a diferenciação do sistema nervoso fetal. Mais importante, sabemos que esse processo é posterior e inteiramente distinto do momento em que ocorre a formação da genital e das gônadas. Por isso, sabemos hoje que a aparência do genital não é um indicador confiável para a definição do gênero de uma criança – e não apenas no caso de condições intersexo. Em vez disso, a intuição da pessoa sobre sua experiência subjetiva com relação a gênero é a fonte mais confiável sobre qual é seu gênero: crianças trans, assim como crianças cis, têm uma intuição bastante clara sobre qual expressão preferem adotar. Sem amarras impostas por um contexto social preconceituoso, crianças e adultos podem expressar seu gênero da forma que lhes é mais natural.