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Disforia social

As disforias sociais de gênero orbitam em torno de algumas ideias: a que gênero as pessoas acreditam que eu pertenço? Como eu sou compreendida e tratada a partir dessa percepção? Disforia social é sobre como o mundo exterior nos percebe, como os outros se dirigem a você e como é esperado que você os trate. Os sentimentos de pessoas trans em relação a isso mudam ao longo do processo de auto descoberta e da transição.

Antes de se perceber como trans, há apenas a consciência de que algo parece estranho na maneira como você interage com as outras pessoas. Pessoas do seu gênero designado ao nascer parecem interagir umas com as outras de maneiras que não parecem naturais para você. Seus comportamentos e maneirismos parecem estranhos e incompreensíveis, enquanto as interações de indivíduos com seu verdadeiro gênero parecem fazer mais sentido e serem mais fáceis. Naturalmente, você consegue entender mais as pessoas mais perto de sua própria verdade.

Por exemplo, pessoas trans femininas (já antes da transição) podem se sentir muito desconfortáveis em grupos de homens. Elas podem se sentir deslocadas e ter dificuldade para se encaixar entre seus colegas do sexo masculino. As interações sociais masculinas não são naturais para elas, e tentar imitar essa forma de socializar parece estranho. Elas podem se sentir mais atraídas por amizades com mulheres, mas ficam frustradas com a dinâmica social heteronormativa que dificulta a formação de relações não sexualizadas entre gêneros opostos – isso se as mulheres estiverem dispostas a fazer amizades com aquela que veem como homem. Mulheres trans também podem se sentir profundamente magoadas quando mulheres se afastam ou desconfiam delas apenas por percebê-las como homens.

Esse sentimento de que há algo errado se intensifica à medida que a pessoa se torna consciente de sua própria incongruência de gênero e, ao perceber quem realmente é, o sentimento assume uma nova forma. Para pessoas trans binárias, pode surgir a necessidade intensa de ser visto como seu verdadeiro gênero, seja homem ou mulher. Algumas pessoas não binárias experimentam isso mais como euforia por não serem vistas como nem como homens nem como mulheres e, portanto, não serem tratadas de formas muito associadas a gênero, ou por serem lidas como pertencentes a gêneros diferentes em momentos diferentes. 

A disforia social é onde os pronomes (ou seu uso errado) entram em jogo; ser tratado por ela quando você é um homem é bastante desconfortável, e o mesmo vale para mulheres. Isso é verdade para todas as pessoas, incluindo pessoas cisgênero, mas onde uma pessoa cis se sentirá insultada por ser tratada pelo gênero errado, uma pessoa trans se sentirá magoada ou atacada. É como o som de unhas arranhando um quadro-negro. Ouvir o pronome errado pode ser um lembrete de que a pessoa com quem você está falando não a reconhece pelo seu gênero. É um sinal doloroso de que estão te vendo como algo que você não é.

Pronomes neutros de gênero também podem ser perturbadores para pessoas trans binárias se usados ​​de uma forma que deixe claro que a pessoa está evitando o pronome que corresponde a elas. Isso geralmente é uma indicação de que uma pessoa foi lida como transgênero, e a pessoa que se dirige a ela não sabe quais pronomes usar. Perguntar pelos pronomes pode resolver essa situação imediatamente, mas o paradoxo é que mesmo nesse cenário, ter seus pronomes questionados pode, por si só, induzir a disforia em torno de ter sido reconhecido como sendo trans.

O mesmo também se aplica a nomes. Ser chamado pelo nome de nascença (nome morto) em vez do nome escolhido pode ser sentido como invalidante quando feito por ignorância, ou como ofensivo quando feito intencionalmente.

A euforia também pode se manifestar como alegria ou constrangimento por ser rotulado como seu verdadeiro gênero enquanto a pessoa ainda vive como seu gênero designado no nascimento. Exemplos:

  • Uma pessoa AMAB sendo chamada de “menininha”, com a intenção de insultá-la, mas fazendo com que ela fique vermelha de vergonha em vez de ficar com raiva.
  • Uma pessoa AFAB sendo tratado por “senhor” ou “cara”, e se sentindo bem por isso.

O desconforto causado pela disforia social pode pressionar a pessoa trans a agir e se apresentar de forma exagerada e mesmo expressar certos estereótipos de gênero para tentar deixar claro para o resto do mundo de que ela realmente é quem diz ser. Sobretudo no início da transição, pessoas trans femininas podem se concentrar em maquiagem e roupas femininas ou ficar mais quietas para parecer mais recatadas, falando em um tom de voz mais agudo. Pessoas trans masculinas tendem a se apoiar em estilos de roupas masculinas, suprimir demonstrações de emoção, começar a falar mais alto e a falar com entonações mais graves.

Disforia física vs social

Algumas características físicas que podem causar desconforto o tempo todo para algumas pessoas trans podem se manifestar apenas como disforia social para outras. Por exemplo, uma pessoa pode sentir uma vergonha muito maior em relação à sua aparência física ao passar no caixa do supermercado, pois nessa situação existe o risco de ela ser percebida pelo gênero incorreto ou como trans. Ao mesmo tempo, essa pessoa pode se sentir completamente confortável ​​ao interagir com pessoas mais próximas, pois nesse ambiente ela é sempre vista e tratada pelo seu gênero correto.

Uma mulher trans que não sente disforia física direta em torno da própria voz pode gostar muito de cantar num tom mais grave de barítono e se sentir bastante confortável em casa apenas com pessoas conhecidas. Porém, em público, falar com uma voz mais feminina desempenha um papel crítico para que essa pessoa seja vista como uma mulher por estranhos, o que pode agravar o senso de disforia e fazer com que a pessoa se esforce para deixar a voz mais aguda. Essa mudança no comportamento muitas vezes acontece automaticamente nessas situações sem que a pessoa nem pense a respeito.

Disforia com papéis e expectativas sociais

Outro aspecto relevante da disforia social diz respeito às expectativas de gênero geralmente colocadas sobre papéis sociais. Os papéis de gênero existem e, por mais que tentemos enfrentá-los e apontar o sexismo que existe, sempre haverá alguma ideia prévia sobre as pessoas baseadas em como elas são percebidas em relação ao seu gênero. Alguns exemplos disso estão nos papéis matrimoniais e parentais; “Marido”, “Esposa”, “Mãe”, “Pai”, esses termos vêm com muita bagagem presa a eles, e o papel errado, ou mesmo qualquer papel, pode parecer uma camisa de força. Você recebe um manual inteiro repleto de comportamentos e ações, gostos e desgostos, e é esperado que você simplesmente se adeque, e se você não cumprir esses requisitos, será visto como um mau cônjuge ou mau pai ou mãe.

Um pai AFAB que dá à luz pode sofrer disforia severa ao ser rotulado como “mãe”. A grande maioria dos recursos e conteúdos relacionados à gestação pressupõe o feminino como norma. Sendo assim, o próprio processo de engravidar, carregar e dar à luz uma criança é excepcionalmente marcado por expectativas de gênero femininas. Se você está grávido, provavelmente será rotulado como “mãe”, independentemente de como você realmente se sente em relação a este papel, e com esse rótulo vêm juntas várias suposições sobre cuidados, amamentação e criação dos filhos. Por exemplo, um homem trans que dá à luz pode se sentir bastante disfórico com a ideia de amamentar, ou mesmo ser fisicamente incapaz disso, caso tenha realizado uma mastectomia.

Pessoas trans femininas também se deparam com essa sensação. Se você está segurando um bebê ou cuidando de uma criança, imediatamente te rotulam como mãe ou apontam seu “instinto maternal”. Isso pode ser gratificante, porque é um sinal de que você foi vista como mulher, mas também pode se tornar extremamente desconfortável quando mulheres cis começam a falar sobre o que elas acham que são experiências compartilhadas envolvendo processos reprodutivos típicos de pessoas com útero.

A disforia social pode aparecer de maneiras inesperadas frente à necessidade de se conformar aos padrões sociais de seu verdadeiro gênero. Por exemplo, muitas mulheres trans relatam sentir a necessidade de cobrir o peito antes da transição por um senso inexplicável de vergonha. Um desconforto ao nadar ou exibir seu corpo sem cobrir o peito é um traço comum entre AMABs trans: mesmo quando não há ainda compreensão sobre o gênero, a pessoa muitas vezes simplesmente sente isso sem perceber o porque.

Vergonha

O não cumprimento desses papéis de gênero pode se manifestar intensamente como vergonha e humilhação. Crescer sem se entender trans e lutar para se encaixar em estereótipos de gênero geralmente resulta em sinais de decepção de pais e colegas que esperavam o contrário. Um pai pode ficar desapontado porque sua filha AMAB não sente muita vontade de praticar esportes ou outras atividades masculinas. Colegas mulheres podem demonstrar desaprovação de um adolescente AFAB caso ele escolha sair com grupos de meninos. Garotos adolescentes podem condenar uma pessoa trans AMAB que não concorda com o “senso de humor” do grupo, muitas vezes repleto de piadas machistas.

Esse tipo de situação pode levar a bullying e abuso, levando a pessoa trans a se sentir isolada, sozinha e deslocada. Essa sensação de divisão cria sentimentos de vergonha pelo fato da pessoa não ser aquilo que todos esperavam que fosse. Frequentemente esse tipo de experiência acaba resultando em uma série de sofrimentos psicológicos como transtornos depressivos ou de ansiedade, isso tudo somado aos incômodos da disforia de gênero.

Sentimentos de vergonha ou culpa podem se tornar especialmente intensos no momento em que a pessoa se assume ou pensa em se assumir como trans. Há sempre um risco real de que amigos e membros da própria família tenham reações transfóbicas. Isso não leva somente a consequências práticas como a perda da relação com essas pessoas: sofrer esse tipo de reação pode empurrar a pessoa de volta para o “armário”, trazendo dúvidas e fortes sentimentos negativos sobre ela mesma. Uma pessoa trans adulta em um casamento pode sentir um enorme remorso pelo possível impacto da transição em seu cônjuge ou filhos.

A outra maneira pela qual a vergonha entra em jogo é na transfobia sistêmica presente em nossa sociedade. Adultos trans de hoje cresceram assistindo à mídia transfóbica na infância. A obsessão com pessoas trans do final dos anos 80 e início dos anos 90 foi terrivelmente traumática para as crianças trans da época, que observaram todos os adultos e colegas ao seu redor rirem e zombarem e ficarem enojados com pessoas com as quais essas crianças não apenas se identificaram, mas por quem também sentiram forte empatia. Essa vergonha permanece conosco por toda a nossa vida; esse é um motivo importante pelo qual tantas pessoas trans demoram tanto para sair do armário. É um processo demorado superar essa vergonha e entender que pessoas trans não são as caricaturas a que fomos expostas ao longo da vida.

A vergonha também tende a se acumular até transbordar para uma ação radical. Um aspecto muito comum entre as histórias de pessoas trans são os ciclos em que elas juntam forças para se aceitar, lutando cada vez menos contra seus sentimentos, até que de repente se sintam dominadas pela vergonha, e acabam querendo desistir de tudo, jurando nunca mais perseguir esses sentimentos. Enquanto essa vergonha não for superada, a pessoa pode permanecer um grande tempo repetindo esse padrão.

Namoro e relacionamentos românticos

A disforia social entra em jogo fortemente com os rituais de namoro. Ser forçado a ser o namorado ou namorada quando você não é um menino ou uma menina pode ser extremamente desorientador e muitas vezes parece bem injusto. As AMABs podem desejar serem mimadas, e os AFABs podem ficar incomodados com a quantidade de atenção que recebem de seus parceiros e pessoas estranhas (além do desconforto que mulheres no geral experienciam, pois isso inclui atenção genuína, não apenas atenção indesejada). As expectativas colocadas sobre eles por seus parceiros para preencher essas funções de namoro podem parecer um fardo pesado para carregar. Por outro lado, namorar vivendo como seu verdadeiro gênero se torna bem mais interessante. Compre flores para uma garota trans e assista ela desmaiando de euforia – isso provavelmente nunca aconteceu com ela antes.

Antes de se perceber como trans, a pessoa pode sentir tanta pressão para se conformar à heterossexualidade a ponto de suprimir seus próprios sentimentos com relação aos relacionamentos, assumindo um papel performativo e não genuíno com o que ela sente. Muitas mulheres trans já tentaram representar o papel de marido heterossexual para esposa, apenas para perceberem com a transição que prefeririam muito mais o papel da esposa. Algumas mulheres trans que se consideravam heterossexuais antes de transicionar, podem até mesmo descobrir que nem se sentem atraídas por mulheres.

Além do desconforto, muitas pessoas trans percebem que a dinâmica dos relacionamentos que vivenciaram simplesmente não se encaixavam à expectativa heteronormativa. Muitas pessoas trans percebem, após a transição, que nunca realmente namoraram da mesma forma que uma pessoa cis do seu gênero designado no nascimento, em vez disso, sempre tiveram relacionamentos românticos mais parecidos com os de pessoas de sua verdadeira orientação. Relacionamentos de homens com homens e de mulheres com mulheres têm dinâmicas completamente diferentes dos relacionamentos heterossexuais; diferentes rituais de namoro, diferentes percepções, diferentes estilos de comunicação. Os homens se relacionam de maneira diferente com homens do que com mulheres, e o mesmo vale para mulheres – e isso tudo acontece mesmo quando os parceiros ainda não sabem que são homens ou mulheres.

É comum, por exemplo, que mulheres trans lésbicas percebam que suas tentativas de ter relacionamentos antes de transicionar pareciam muito com a forma como qualquer mulher lésbica se relaciona, buscando antes de tudo fazer amizade com outras mulheres. Encontros não são rotulados como encontros românticos, em geral as duas apenas marcam de sair juntas para conversar e ver como se sentem uma com a outra. Consequentemente, às vezes pessoas AMAB acabam terminando namoros justamente por não serem capazes de se conformar às expectativas colocadas sobre “o homem da relação” em relacionamentos heteroafetivos.

Essa dinâmica fica ainda mais complexa para pessoas não binárias, algumas das quais podem, na melhor das hipóteses, descrever seu estilo de namoro como “queer”. Alguns têm dificuldade em definir o papel que querem desempenhar em um relacionamento e como querem se comportar. Outros assumem um papel específico que normalmente é visto como um papel binário de gênero. Algumas pessoas não binárias desejam ser vistas como namoradas / namorados, mesmo que não sejam meninos / meninas. Alguns querem desempenhar um papel visto pela sociedade como neutro ou consistindo em aspectos de ambos os papéis binários.