A despersonalização é uma desconexão de seu próprio corpo, uma incapacidade de acreditar que a pessoa que você vê no espelho é na verdade você mesmo. Você se sente como se estivesse fora de seu corpo, ou como se estivesse observando outra pessoa nele. Você pode se sentir distante e não se importar muito com o que acontece ao seu corpo, não se preocupando com mudanças de peso ou com mudanças na sua forma física, porque você não sente apego pelo que você sente que é uma “prisão de carne” que você carrega ao longo da vida.
Zinnia Jones fornece estas descrições para despersonalização:
- Uma sensação de distanciamento ou estranhamento de seus próprios pensamentos, sentimentos ou corpo: “Eu sei que tenho sentimentos, mas não os sinto”
- Sentir-se dividido em duas partes: uma que se move pelo mundo e a outra observando em silêncio: “Existe esse corpo que anda e que outra pessoa apenas observa”
- Sentindo-se como se você tivesse um eu “irreal” ou ausente, acreditando que você “não tem um eu”
- Torpor emocional ou físico que te faz sentir o mundo como distante, onírico, nebuloso, sem vida, incolor, artificial, como uma imagem sem profundidade ou pouco real
- Estar absorto em si mesmo e ficar compulsivamente analisando ou ruminando seus próprios pensamentos
- Ter um diálogo contínuo e coerente com você mesmo, como se você fosse mais de uma pessoa
- Sentir como se um véu ou uma parede de vidro separasse você do mundo
- Falta de senso de agência – sentir-se vazio, robótico, morto ou como um “zumbi”
- Incapacidade de imaginar coisas
- Ser capaz de pensar com clareza, mas sentir como se alguma qualidade essencial estivesse faltando em seus pensamentos ou experiência do mundo
- Uma sensação de desconexão da vida, impedindo você de um envolvimento criativo e aberto com o mundo
Você pode dar pouca atenção à sua aparência física, atendendo apenas às necessidades utilitárias básicas em roupas e higiene pessoal. Alternativamente, você pode ter um hiperfoco em sua aparência, tentando provocar algum tipo de alegria, qualquer tipo de sentimento de orgulho em seu próprio corpo, apenas para se deparar com uma sensação maior de vazio. Você pode não se preocupar com o estado do seu corpo, talvez nem mesmo temendo a morte, de tão pouco apego à sua vida.
É comum que pessoas trans não sintam uma “aversão clássica” às mudanças físicas ocasionadas pela puberdade, como uma mulher trans sentir claramente que odeia seus pelos corporais, pelo contrário, muitas vezes nos sentimos tão desapegadas e distantes de nós mesmas que nem notamos as mudanças causadas pelos hormônios gonadais durante a puberdade.
Desrealização é um desapego do mundo ao seu redor, uma sensação mental de que tudo o que você percebe é falso.
- Seus arredores parecem estranhos ou desconhecidos, mesmo se você sempre esteve lá, como se alguém tivesse trocado sua casa por uma réplica de mentira
- Movendo-se pelo mundo parece que você está sendo levado por uma esteira, com casas e prédios se movendo ao seu redor, em vez de você se passar por eles
- Sentir-se emocionalmente desconectado das pessoas de quem você gosta, como se você estivesse separado por uma parede de vidro ou como se elas fossem apenas atores fingindo ser quem dizem ser
- Arredores que aparecem distorcidos, embaçados, incolores, bidimensionais ou artificiais, ou uma consciência e clareza intensificadas do ambiente. As folhas das árvores parecem ter bordas afiadas extras, por exemplo
- Distorções na percepção do tempo, como eventos recentes que parecem um passado distante
- Distorções de distância e tamanho e forma dos objetos
- Sentindo-se como um observador passivo nos acontecimentos de sua vida
Se você se identificou um pouco demais com filmes como Matrix ou O Show de Truman, você pode estar passando por desrealização. Esse sintoma também pode se manifestar como um sentimento de você pertence a algum “outro mundo”, como se não pertencesse a esta sociedade, e pode buscar refúgio em um interesse talvez um pouco excessivo por mundos ficcionais.
A despersonalização e a desrealização às vezes vêm acompanhadas de um atrofiamento emocional. Você é capaz de rir e achar graça das coisas, mas raramente sente alegria genuína. Momentos de tristeza ou luto fazem com que você simplesmente fique entorpecido, dissociado pelo evento que o causou. Isso também pode ir na direção oposta, onde a pessoa está tão ansiosa que sua resposta emocional é extremamente desproporcional ao gatilho, resultando em choro severo ou explosões violentas de eventos aparentemente pequenos.
É importante observar que a despersonalização e a desrealização não são sinais exclusivos da disforia de gênero. Estes sintomas também são típicos de vários outros problemas de saúde mental, incluindo depressão crônica, transtorno obsessivo-compulsivo e transtorno de personalidade borderline. A despersonalização e a desrealização não devem ser considerados isoladamente sinais definitivos de disforia de gênero, mas sim como um sinal indicando que algo está errado. Normalmente, também é muito fácil identificar esses sintomas externamente, contanto que você saiba o que procurar. Pessoas com despersonalização e desrealização tendem a ter um olhar vazio e perdido enquanto se movem no mundo, como se estivessem presentes só de corpo. Um dos comentários mais comuns que pessoas em transição escutam, inclusive, é sobre como seu olhar ganhou brilho e vida.
Você tem uma sensação latente de que “não é” como a maioria das pessoas. Você pode sentir que seus amigos te entendem, mas você traça uma linha instintiva e inconsciente entre você e as pessoas “normais”. Quando você interage com uma pessoa “normal”, não tem certeza do que dizer ou como agir.
Você acha difícil priorizar seus próprios sentimentos. Você está ciente das emoções que * deveria * estar sentindo, mas elas são distantes e parecem falsas. Quando outra pessoa está chateada, parece muito mais real e urgente. Você acredita que isso ocorre apenas porque você tem uma natureza protetora e estoica.
Muitas vezes você se sente sem direção na vida. Quando te perguntam sobre objetivos de vida no ensino médio, você realmente não conseguia se importar com sua resposta ou sequer conceber uma resposta. Até as carreiras centradas nos seus interesses pareciam intoleráveis. Você luta para imaginar um futuro para si mesmo, onde seja feliz ou realizada.
Você só dá passos para melhorar sua vida quando forças externas te * forçam *. Você prefere se retirar, se reduzir e se concentrar em hobbies escapistas. Você simplesmente não está motivada para obter coisas boas para si mesma. (Você diz a si mesma que esta é uma aceitação zen, uma libertação de desejos.)
Disforia bioquímica
Para muitas pessoas trans, muito do incômodo psicológico relacionado à disforia de gênero que sentem pode ser aliviado realizando apenas uma transição social, adotando outra expressão de gênero, mas sem fazer uso de hormônios. Mesmo no caso de pessoas que desejam iniciar terapia hormonal, a aceitação e acolhimento do seu meio social após o início da sua transição social são indispensáveis para garantir seu bem estar psicológico. Afinal, não é possível sentir-se confortável consigo mesmo se você se sente coagido a fingir ser outra coisa diariamente.
Entretanto, para muitas pessoas a terapia hormonal é um passo crucial para atingir um conforto pleno. Isso tem duas razões. Além das mudanças físicas no corpo trazidas pela terapia hormonal, esta é responsável também por mudanças no funcionamento e anatomia do cérebro, resultando em alterações comportamentais e psicológicas que trazem bem-estar mental a algumas pessoas trans. Sabemos que uma causa desse bem-estar vem de efeitos neurológicos proporcionados pela terapia hormonal. Conforme discutimos no artigo Causas da Disforia de Gênero, o cérebro humano, ainda na gestação, parece ser “programado” para operar sob a influência de testosterona ou de estrogênio e a presença do hormônio “incorreto” a partir da puberdade impede que certas regiões do cérebro sejam ativadas adequadamente, o que contribui para o agravamento de sintomas de despersonalização e desrealização. Em outras palavras, a disforia de gênero também possui uma base bioquímica e para algumas pessoas a hormonização é essencial para além das mudanças físicas que ela proporciona.
Flutuações químicas e disforia
A intensidade da disforia é altamente influenciada pelo balanço de outras substâncias do corpo. Isso significa que essa sensação pode se intensificar de um dia para o outro. Por exemplo:
- Se o seu açúcar no sangue estiver desequilibrado ou se você tiver um problema de tireoide, isso pode causar um aumento na sensação de disforia.
- Se você está tendo abstinência de dopamina por causa da interrupção de estimulantes, isso pode piorar a situação.
- Se você começar a tomar um antidepressivo ISRS e tiver maior disponibilidade de serotonina, isso pode tornar a disforia menos intensa.
- Pessoas trans AMAB com testículos apresentam picos de testosterona em relação à atração e ao desejo, o que pode torná-las mais disfóricas.
- Pessoas trans AFAB com ovários funcionais apresentam aumentos e quedas de estrogênio e progesterona ao longo de seu ciclo menstrual, fazendo com que sua disforia se intensifique e diminua com base no dia do ciclo.
Existem dezenas de sistemas no corpo que funcionam em conjunto e todos flutuam de um dia para o outro, alterando o estado emocional da pessoa e suas sensibilidades, tornando-a mais ou menos sensível à disforia de gênero. Um dia você pode ignorar quando alguém se dirige a você pelo gênero errado como se isso não fosse nada, em outro dia isso machuca como uma facada no peito. Um dia você se vê no espelho, no outro você está olhando para um antigo você.
Algumas pessoas experimentam isso como uma fluidez de seu gênero, com alguns dias inclinando-se para o masculino, outros dias inclinando-se para o feminino e outros dias sem sentir nenhum gênero, ou ambos.
Vale frisar: só porque você se sente muito disfórico um dia e não disfórico no outro, não significa que você não seja realmente trans.
Disforia e pessoas cis
Quando pessoas cis são submetidas a tratamentos com hormônios sexuais do outro gênero, isso sempre resulta em disforia. Esta é uma das razões pelas quais a espironolactona raramente é prescrita aos homens, porque o fator anti-andrógeno causa instabilidade mental. Cinco a dez por cento das mulheres cis sofrem de síndrome do ovário policístico, uma condição que faz com que os ovários produzam testosterona, o que altera todo o balanço hormonal e faz com que essas mulheres desenvolvam caracteristicas sexuais secundárias masculinas. O sofrimento delas inclusive pode ser considerados como um dos casos raros em que pessoas cis sentem disforia de gênero.
Uma demonstração disso é o trágico caso de David Reimer. Aos sete meses de idade, David e seu irmão gêmeo foram circuncidados para tratar um caso grave de fimose (um problema de pele no prepúcio). Houve um erro no procedimento médico e o pênis de David foi severamente danificado. Por conta disso, decidiram realizar uma vaginoplastia e criá-lo como uma menina, incluindo terapia hormonal com estrogênio na pubescência. Aos 13 anos, ele estava mergulhado em depressão suicida e sofrendo muito, pois nenhuma quantidade de treinamento e incentivo pode fazer um menino gostar de ser uma menina. Quando seus pais o informaram sobre o que havia acontecido, ele começou a se apresentar de forma masculina, mudou para a terapia hormonal com testosterona e, ao longo de sua adolescência, passou por várias operações para aliviar sua disforia de gênero.
As pessoas sabem quando estão vivendo com o gênero errado.
O psicólogo John Money supervisionou o caso de David e foi o grande responsável pelas decisões que foram tomadas durante a criação de David. Money, tentando alcançar a fama, relatou de forma bastante distorcida o caso de David, afirmando em seus relatórios que sua decisão e sua teoria estavam completamente corretas e que David estaria vivendo uma vida feliz enquanto mulher. O resultado disso se vê até hoje, já que os relatórios de Money foram utilizados para justificar a realização cirurgias genitais como uma medida apropriada em bebês com condições intersexo. Hoje, décadas depois, ainda existem médicos que acreditam que você pode simplesmente mudar os órgãos genitais de uma criança e criá-la como qualquer gênero, um absurdo que gera danos muitas vezes irreversíveis na vida de muitas pessoas.
Essa é uma das grandes dificuldades enfrentadas pela comunidade intersexo. Aproximadamente um em cada 60 nascimentos resulta em algum tipo de condição intersexo (embora nem todos estejam relacionados à genitália). Frequentemente, os procedimentos “corretivos” usados em crianças intersexuais resultam em perda de função ou de sensação na genitália. Com muita frequência, médicos optam pela designação feminina forçada porque é mais fácil construir uma vulva do que um pênis.