A síndrome do impostor é um nome popularmente dado para padrão psicológico no qual um indivíduo apresenta dúvidas constantes sobre suas habilidades, seu caráter, ou qualquer outro aspecto de si, e sente um medo persistente de ser exposto como uma “fraude”.
É muito comum que pessoas trans, especialmente no início de suas descobertas, duvidem muito de seus sentimentos e da ideia de que elas possam de fato ser trans. Para pessoas trans que já tem mais tempo dessa vivência, chega a ser engraçado ler inúmeros posts em fóruns trans de pessoas descrevendo em detalhes como gostariam de poder viver como outro gênero, e que terminam com a pergunta “mas não sei, será que sou trans mesmo?”.
Vários discursos que circulam a respeito de pessoas trans são responsáveis pela dificuldade de nos reconhecermos enquanto tal. A narrativa do “nascer no corpo errado”, por exemplo, levou a muita desinformação sobre o que é ser trans, afinal, nem todas as pessoas trans apresentam disforia física ou sentem isso de forma tão intensa – às vezes nem sabemos identificar esse sentimento. Muitas pessoas trans cresceram pensando que não são realmente trans apenas porque não sentiam uma convicção clara de que eram de um gênero diferente desde a infância. Várias pessoas trans não binárias sentem que algo está errado com as expectativas que as pessoas têm sobre elas desde muito cedo, porém têm dificuldade de acreditar que podem ser trans por não se sentirem plenamente identificadas com nenhum gênero binário.
Fora concepções equivocadas, mas que ao menos não invalidam a existência de pessoas trans, também somos cercados dos mais variados discursos transfóbicos que sequer reconhecem a transgeneridade como algo legítimo, ou que defendem que pessoas trans estariam tentando “enganar” as pessoas para ter alguma vantagem ou que são pessoas fora de sua sanidade que estão erradas sobre tudo que acreditam.
É normal que pessoas trans tenham muitas dúvidas sobre a validade do que sentem, especialmente tendo em vista a força de estereótipos de gênero – ver a si mesmo não atendendo a esses estereótipos pode levantar dúvidas sobre seu gênero. Pode ser difícil, em uma situação desse tipo, saber se você é trans ou apenas não se identifica com padrões rígidos de expressão de gênero. Afinal, várias pessoas cis também sentem desconforto com padrões rígidos de expressão de gênero.
Uma vivência cercada de transfobia também prejudica bastante a autoestima de pessoas trans e sua capacidade de acreditarem em si mesmas. A disforia de gênero também pode ocasionar uma depressão, o que reforça ainda mais um estado de inação e de dúvidas intensas. Tudo isso leva a uma auto-invalidação que pode criar enormes dificuldades para aceitar sua própria identidade de gênero.
Mas esta é justamente a questão: somente pessoas trans ficam se preocupando se são realmente trans. Pessoas cisgênero não costumam ter essa obsessão com sua identidade: se elas chegam a pensar sobre como seria viver como outro gênero, rapidamente abandonam a ideia. Se você continuar voltando a esses pensamentos repetidamente, esse é um bom sinal de que você deveria investigar mais esses sentimentos e considerar seriamente a possibilidade de ser trans.
O mundo está cheio de discursos que nos enchem de dúvidas e nos impedem de romper com a ordem social estabelecida. Abaixo, exploramos alguns dos sistemas e ideologias que buscam invalidar as pessoas trans e impedir que possamos entender nossa própria experiência.
Opressão patriarcal
Um dos pontos que causa confusão no processo de descoberta de pessoas trans AFAB, especialmente pessoas não binárias que não querem uma transição medicamentosa, tem a ver com opressões sistêmicas que mulheres no geral sofrem. A ideia de que “ah, você simplesmente não quer ser mulher por causa do machismo que mulheres sofrem” é ouvida com muita frequência e pode influenciar profundamente essas pessoas a ponto de duvidarem da sua própria percepção. Essa lógica não faz muito sentido, porque se você é AFAB e não se sente uma mulher, isso significa ser trans. Além disso, pessoas trans costumam sofrer ainda mais discriminação do que mulheres, sendo assim, ideia de que se assumir como trans ajudaria alguém a escapar de algum tipo de opressão é bastante absurda.
A mensagem do feminismo radical de que deveríamos ‘abandonar os papéis de gênero’ ou de ‘abolir o gênero’ também pode dificultar a análise desses sentimentos. “Será que sou realmente uma pessoa não-binária ou sou apenas uma feminista?” “Eu sou mesmo homem, ou sou apenas uma lésbica muito masculina?”. Assim como em todo o processo de exploração sobre seu gênero, é ideal buscar pessoas com experiências que você considera próximas da sua – neste caso, tanto lésbicas cis quanto homens trans – e avaliar como as experiências dessas pessoas ressoam com as suas.
Mulheres cis podem reclamar da opressão causada pelo patriarcado, mas costumam enxergar tais problemas como externos ao fato de elas serem mulheres. Afinal, mesmo mulheres cis com uma expressão bastante masculina ainda são mulheres e identificam-se como tal, apesar de desviarem da expressão feminina dominante.
Se você sente que não é uma mulher binária, então você não é uma mulher binária. Mulheres cis não sentem esse distanciamento em relação ao seu gênero.
Masculinidade tóxica
Crianças AMAB crescem cercadas por mensagens do que é “ser um homem de verdade” e várias dessas representações são bastante negativas e machistas. Existem tão poucos exemplos de masculinidade positiva na mídia popular, e às vezes até no próprio convívio pessoal, que pode ser difícil para pessoas AMAB distinguirem se realmente são trans ou se apenas não se identificam com padrões tóxicos de masculinidade. Esse mesmo incômodo pode ser um ponto de dúvida também para que uma pessoa trans AFAB assuma uma identificação com a masculinidade.
Aqui, pode ser interessante refletir sobre as pessoas com quem você costuma se identificar, para além de estereótipos negativos: homens tipicamente se identificam mais com outros homens, sobretudo no caso de comportamentos que percebem como positivos. Uma mulher trans, por outro lado, além de não se identificar com a maioria dos comportamentos masculinos (bons ou ruins) que encontra, pode descobrir que a sua vida toda se espelhou muito mais em outras mulheres.
Nesse processo, pode ser interessante explorar expressões de masculinidade ou feminilidade que fogem de padrões heteronormativos: um homem trans pode descobrir que se identifica muito mais com a comunidade gay masculina do que com homens heterossexuais, e o mesmo vale para mulheres trans que não se identificam com modelos clássicos de feminilidade.
Transmedicalismo
Transmedicalismo é uma ideologia derivada da escala de Harry Benjamin que, ecoando os critérios rígidos pré-WPATH sobre o que é ser “trans de verdade”, exige que uma pessoa sinta disforia física intensa e necessariamente deseje uma transição médica, invalidando completamente identidades não binárias. Em sua essência, o transmedicalismo é um conceito excludente, que eleva pessoas trans binárias acima de outras identidades de gênero, e que enxerga pessoas trans que não desejam se enquadrar perfeitamente no padrão binário como um constrangimento que prejudicaria a imagem das “verdadeiras” pessoas trans.
Sem perceber, a postura transmedicalista é destrutiva até mesmo a pessoas transgênero que se consideram binárias. O transmedicalismo abraça pressupostos transfóbicos que pretendem policiar a partir de qual ponto em sua transição uma pessoa é “realmente trans”: após a cirurgia de confirmação genital? Após o início da terapia hormonal? Esta ideologia ignora não apenas que pessoas trans podem não desejar se submeter a tratamentos médicos, como também que tais tratamentos podem ser inviáveis para muitas pessoas trans por razões médicas ou econômicas.
Se a primeira exposição de uma pessoa trans ao universo trans vem de um transmedicalista, isso pode prejudicar gravemente sua autoaceitação e empurrá-la ainda mais para dentro do armário, impedindo que ela explore sua identidade com conforto e punindo qualquer um que não sinta a mais absoluta certeza de que se sente 100% pertencente ao outro gênero binário diferente daquele designado no nascimento.